A presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Rosa Weber, votou nesta sexta-feira, 22/09/2023, a favor da descriminalização do aborto com até 12 semanas de gestação. Ela é relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442/2017, conhecida como ADPF 442. Este processo é uma das medidas judiciais que fazem parte do controle concentrado de constitucionalidade e tem como objetivo evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
A ADPF 442 foi proposta em 2017, assinada por Luciana Boiteux e pede providências ao STF para resguardar direitos das mulheres ao aborto seguro, alegando que a proibição do aborto até 12ª semana de gravidez afronta preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não-discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.
Em 2018, foi realizada audiência pública para ouvir a sociedade civil sobre o tema. A Rede Feminista de Juristas – deFEMde esteve no STF e participou da audiência; confira o relato da Liderança à época, Marina Ganzarolli, aqui. A deFEMde, além de participar da audiência pública – com vez e voz, em fala conjunta com Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Associação CRIOLA, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde – CFSS, Grupo Curumim Gestação e Parto e Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA – ao lado de Débora Diniz, que teve o maior destaque nas sessões com exposição brilhante sobre o tema, também fez extensa campanha na imprensa em defesa da descriminalização do aborto, conversando com diversos veículos de comunicação.
“[…] a democracia não se resume à regra da maioria. Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorias) possam ser causados pela vontade da maioria. No Brasil essa tarefa cabe ao Supremo Tribunal Federal, a quem o art. 102, caput , da CF, confiou a missão de “guardião da Constituição”. […] se uma questão jurídica é apresentada ao Poder Judiciário por qualquer pessoa que tenha legitimidade para tanto, o Poder Judiciário é obrigado a enfrentá-la. Assim, provocado ao se pronunciar sobre a compatibilidade de lei ou ato normativo com a Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal é obrigado a decidir, e a decidir segundo a interpretação adequada do texto da Constituição. No presente caso, o Supremo Tribunal Federal é provocado a decidir se a criminalização do aborto, da forma como tipificada nos arts. 124 e 126 do Código Penal, é compatível com a ordem de princípios e valores inscritos na Constituição. É isso que está em causa. E assim o faz consciente da sua responsabilidade democrática.”
Ministra Rosa Weber
O voto da Ministra Rosa Weber, com mais de 100 páginas, afirma que estudos mostram que a criminalização não é a melhor política para resolver os problemas que envolvem o aborto, sendo que a chamada justiça social reprodutiva, “fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher”. A ministra cita pesquisas indicando que as mulheres negras e de classe social mais baixa são as maiores afetadas pelos abortos ilegais, asseverando que cabe ao Estado atuar para garantir correções de vulnerabilidades que impedem o efeito exercício do direito à vida, que não se restringe ao nascimento.
Não é necessário esforço para a demonstração da coerência normativa e narrativa do argumento do impacto desproporcional dos arts. 124 e 126 do Código Penal sobre o núcleo social mais estigmatizado, o de mulheres pretas e pobres. Tanto a Pesquisa Nacional do Aborto, elaborada pela Universidade de Brasília, a pedido do Ministério da Saúde, quanto as de perfis delimitados, restritos à análise de conjunto de processos, como fez a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, são enfáticas na explicitação dessa realidade social. Nesse quadro do impacto desproporcional da criminalização, ponto que foi objeto de exaustiva deliberação na audiência pública, fica evidente seu caráter punitivo social, vale dizer, sua natureza de imposição de castigo às mulheres, notadamente as mais vulneráveis. A criminalização perpetua o quadro de discriminação com base no gênero, porque ninguém supõe, ainda que em última lente, que o homem de alguma forma seja reprovado pela sua conduta de liberdade sexual, afinal a questão reprodutiva não lhe pertence de forma direta. Tanto que pouco – ou nada – se fala na responsabilidade masculina na abordagem do tema. E mesmo nas situações de aborto legal as mulheres sofrem discriminações e juízos de reprovação moral tanto do corpo social quanto sanitário de sua comunidade. O impacto desproporcional, em verdade, incrementa o estigma social sobre a mulher que não escolhe pela maternidade como projeto de vida digna, na medida em que a tutela penal vincula imposição de conduta à condição biológica da mulher.
Ministra Rosa Weber
Em seu voto, a ministra aponta que a criminalização do aborto foi determinada numa época em que as mulheres eram excluídas de definirem suas próprias vidas, sendo que a “maternidade e os cuidados domésticos compunham o projeto de vida da mulher, qualquer escolha fora desse padrão era inaceitável e o estigma social, certeiro”. A Ministra Rosa Weber disse que as mulheres foram silenciadas e não conseguiram participar da definição de algo que dizia respeito ao direito das próprias mulheres, que é o sistema reprodutivo. Ainda discorrendo sobre o tema, a ministra afirma que não cabe ao Supremo não atuar para garantir princípios constitucionais diante da inércia do Poder Legislativo, sacrificando assim as garantias fundamentais que está constitucionalmente obrigado a proteger.
É dever deste Supremo Tribunal Federal, como instituição que tem por função precípua a guarda da Constituição, reconhecer a não recepção dos atos normativos que obstaculizam a operação da democracia e a proteção adequada e suficiente dos seus direitos fundamentais, em particular a tutela adequada do valor intrínseco da vida humana, em toda sua complexidade que assume no ordenamento constitucional.
Ministra rosa weber
Após o voto da Ministra Rosa Weber, proferido em plenário virtual, o ministro Luís Roberto Barroso pediu destaque no julgamento da ADPF 442, fazendo com que o tema tenha de ser votado de forma presencial, e provavelmente após a aposentadoria da Ministra Rosa Weber, que deve deixar a Corte ao completar 75 anos, o que acontece no próximo dia 02/10/2023. O destaque faz a votação ser suspensa até surgimento de agenda presencial; a ministra Rosa Weber, no entanto, garantiu a apresentação e contabilização de seu voto na ação, mesmo se o julgamento só for concluído quando ela estiver aposentada.
Pelo voto da Ministra Rosa Weber, a interrupção voluntária da gestação nas 12 primeiras semanas deixa de ser crime: nenhuma mulher mais poderia ser presa por abortar e nenhuma pessoa poderia ser presa por auxiliar alguém a realizar um aborto. E caso a maioria dos ministros siga este entendimento, essa é a hipótese mais conservadora para um resultado favorável.
O STF pode ousar mais, a exemplo do julgamento acerca das uniões homoafetivas, e determinar ao órgão responsável – o Ministério da Saúde – que tome providências para a garantia de direitos, ou seja, que adapte as normas do aborto legal para incluir a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana; na prática esta iniciativa sinalizaria a descriminalização do aborto no Brasil, permitindo às mulheres nestas condições que buscassem os sistemas de saúde.
Esperamos que a Corte – formada majoritariamente por homens brancos e notadamente conservadores, felizes e confortáveis na manutenção de poderes indevidos sobre corpos femininos – siga a relatoria primorosa de Rosa Weber e não imponha às mulheres brasileiras o retrocesso.
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