deFEMde fala do crime de perseguição, ou stalking
https://www.defemde.ong.br/wp-content/uploads/2021/07/black-and-white-black-and-white-depressed-568025-1024x683.jpg 1024 683 Rede Feminista de Juristas Rede Feminista de Juristas https://secure.gravatar.com/avatar/3374a4130fafa3930fda899263bebd31?s=96&d=mm&r=gReportagem originalmente publicada pela Revista Istoé. Para acessar o conteúdo, clique aqui.
A Rede Feminista de Juristas – deFEMde conversou com Vinicius Mendes, jornalista, sobre a tipificação do crime de perseguição no Brasil, que criminaliza a prática conhecida como stalking.
O stalking tem raízes na caça de animais; é daí que o termo se deriva em inglês. A prática consiste em rastrear, encurralar e/ou ameaçar uma pessoa, no meio físico, ou no meio virtual. Vítimas de stalking (ou perseguição) costumam receber telefonemas sem identificação insistentemente (a ligação é comumente encerrada no segundo em que atendem), ter a caixa de entrada e a caixa de spam sempre lotadas de mensagens dos agressores, receber notificações frequentes sobre mudanças (que elas não fizeram) de senha em redes sociais e aplicativos (sinalizando tentativas de hack do agressor), muitos comentários de uma mesma pessoa ou de perfis ocultos com escrita similar em diversas postagens suas em redes sociais (independentemente se o conteúdo da postagem é escrito, ou audiovisual; essa frequência e insistência de comentários sinaliza a presença do agressor em suas redes sociais); estas vítimas também podem identificar imagens suas em momentos mais íntimos (na piscina de casa com a família, por exemplo) roubadas de stories, feeds, reels e outros, e postadas em outras redes sociais pelos agressores (sinalizando o nível de acesso que o stalker tem sobre a vítima, independentemente dos níveis de restrição que esta imponha sobre seus dados), ou ver deep fakes seus em circulação e dados sensíveis como CPF, conta bancária, chaves de segurança de cartão de crédito e outros expostos na internet sem explicação (sinalizando agressores engajados em violência psicológica, espalhando ofensas sobre a vítima e estimulando mensagens de ódio contra ela, buscando seu constrangimento e isolamento).
Os stalkers rastreiam e assediam as vítimas mais facilmente pela internet, e atingem também pessoas próximas. Agressores se aproximam de amigos e familiares das vítimas para coletar informações sensíveis (endereço, CPF, dados bancários, status de relacionamento, dentre outros) e para ameaçá-los, afastando estas pessoas das vítimas; eles também podem obter estes dados usando suas ferramentas de trabalho (como atendentes de SAC e outros serviços, com acesso a cadastros de usuários e visualização de informações da vítima). Em casos mais severos, o stalker pode investir fisicamente contra a vítima, seguindo-a na rua, invadindo sua propriedade e tentando a prática de qualquer (outro) tipo de violência contra a vítima. É o caso da gamer Sol.Qualquer mulher pode ser vítima de stalking; por isso, apesar de serem detectadas algumas ocorrências tendo homens como vítimas, o stalking é tratado como uma das formas de violência contra as mulheres. Haru e Sol são casos emblemáticos da perseguição de homens que acreditavam ter algum tipo de “direito” às vidas delas; o relato de Adriana Falcão segue na mesma linha. A aproximação do stalker geralmente não é percebida, pois o contato inicial se dá de forma cordial, em interações controladas como a visita do técnico da NET, nas quais não se depreende perigo; é importante não culpabilizar a vítima e responsabilizar energicamente o agressor, e as estruturas que facilitam estas práticas. O stalker acredita que merece um contato mais íntimo, e que seus esforços para obter esse contato são justificados. Este é o padrão de educação masculina. Homens são educados para não medirem esforços, para ignorar o “não” e interpretar qualquer sinal como um “sim“. Todas as mulheres estão sujeitas a este crime. O agressor, no entanto, tem um perfil certeiro.
A Lei de Stalking não substitui norma anterior – isso não era normatizado antes. O que ocorria é que a prática poderia ser enquadrada em contravenção penal (a perturbação de sossego), e isso, com muito boa vontade dos sistemas de Justiça, que comumente ignoravam os pedidos de ajuda das vítimas. Não podemos afirmar que a revogação do dispositivo por esta norma caracteriza substituição. Com a Lei 14.132/2021, as vítimas de perseguição tem amparo legal específico e não dependem dessa boa vontade. A norma acolhe uma demanda de muito tempo das mulheres para o combate às violências de gênero, e vemos à menção expressa à discriminação de gênero como algo positivo. Se a norma viesse 5 anos antes, Sol estaria viva e Haru não teria passado pelo horror que passou; muitas mulheres não teriam pavor de visitas técnicas da NET, se tivéssemos essa norma antes. Ter amparo legal muda totalmente o jogo para mulheres nas redes sociais. O número de registros da ocorrência em poucos meses da vigência mostra que as vítimas de perseguição começam a sentir que podem procurar ajuda e que estão se fortalecendo com o reconhecimento do que é feito contra elas como crime.
Antes, havia a possibilidade de se enquadrar o stalking na perturbação de sossego, prevista pelo art. 65 da Lei de Contravenções Penais. O dispositivo era um guarda-chuva para uma série de reclamações do cotidiano (barulho, odores de canis e outros), e por isso naturalizado pelos sistemas de Justiça, que comumente não registravam a ocorrência; se registravam, não davam seguimento, ou demoravam demais para pautar o tema, permitindo que os agressores saíssem impunes, como ocorreu com Haru. Departamentos destinados à proteção da mulher não pautavam a conduta fora de relações afetivas, familiares ou inseridas em unidade doméstica, por entender que não havia amparo legal dessas vítimas. Em departamentos que pautam crimes online, as mulheres também não obtinham acolhimento. Não podemos falar em dificuldades com um quadro desses; apenas em impossibilidade. Conseguir justiça nestes casos era tarefa de Sísifo.
O stalking é uma prática muito antiga. Os casos não cresceram; eles só estão sendo mais denunciados, filmados, expostos nas redes sociais, mas não surgiram ontem. Como dizia o filme da Disney: a tale as old as time. Estamos no Julho das Pretas, e precisamos lembrar que Maria Beatriz Nascimento, historiadora, professora, roteirista e poeta negra, foi vítima fatal de stalking nos anos 90. Também é possível afirmar, considerando o contexto do caso, que Daniella Perez foi uma vítima fatal de stalking. As consequências da inexistência de uma norma que dê alguma proteção legal às vítimas dessa prática e a constatação da inércia do Estado ante à violação de Direitos Humanos aqui contida é que exigem a formulação de norma específica. Precisamos lembrar que a perseguição também integra os relacionamentos abusivos; no âmbito afetivo e familiar, a prática integra os dispositivos da Lei Maria da Penha. Muitas mulheres foram – e são – perseguidas por seus companheiros e ex-companheiros, e à época, não tiveram resposta dos sistemas de Justiça por não sofrerem “violência física”. Grande parte destas mulheres hoje integra estatísticas de feminicídio, tentado ou consumado. E grande parte destas mulheres poderia estar viva hoje, se tivesse amparo legal quando entrou na delegacia pela primeira vez com fotos e filmagens do agressor seguindo rua afora e os dizeres “ele me persegue em todos os lugares que eu vou“.
Muitos casos não são denunciados. É importante considerar que, mesmo com a tipificação específica, o receio de represálias dos agressores, aliado ao cenário de violência institucional de gênero constatado em setores de atendimento às mulheres vítimas de violência, desestimulam as vítimas de buscar a ajuda necessária, consolidando o quadro nefasto das cifras ocultas nos dados de segurança pública no país. É necessário um diálogo franco sobre como as instituições podem se tornar mais acessíveis às mulheres e dar plena segurança de acolhimento quando da decisão de denunciar um crime.
O Brasil está bastante atrasado. EUA, grande parte da União Europeia, Reino Unido, África do Sul, Japão, e outros países possuem legislação anti-stalking. A legislação, ainda que falha (condicionando a representação da vítima e forçando uma revitimização, neste aspecto) é importante, pois permitirá um debate qualificado sobre os números de stalking no Brasil, mesmo com as cifras ocultas que infelizmente permeiam os dados de segurança pública, a elaboração de políticas públicas de combate a esta prática, a inclusão do problema em programas de compliance de grandes empresas e possibilita um esforço para a promoção de equidade de gênero e no gênero para o Brasil. Temos uma oportunidade. resta saber se conseguimos aproveitar.